me larga

ME LARGA!

Autor: RUFO, MARCEL
Editora: WMF MARTINS FONTES
Assunto: PSICOLOGIA
ISBN: 8560156615 ISBN-13: 9788560156610
Livro em português – Brochura – 1ª Edição – 2007 – 186 pág.

Ao nascer, o bebê e a mãe fazem um só. É o tempo da fusão, indispensável, em que ele vai ganhar segurança e força. No entanto, é preciso crescer e, para isso, distanciar-se para poder ganhar novos territórios de autonomia e liberdade. Todo o desenvolvimento psicomotor da criança, toda vida humana aparecem como uma seqí¼ência de ligações e desligamentos, de conquistas e separações. Porém, é possí­vel se separar sem sofrer? Por que a separação faz nascer um sentimento de abandono? O que é o trabalho do luto e será que ele alguma vez termina? Para que servem as lembranças?

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Trecho do livro “Me larga! – Separar-se para crescer”, de Marcel Rufo

Editora Martins Fontes

http://revistamarieclaire.globo.com/Marieclaire/0,6993,EML1678141-1731,00.html

1. No começo era a fusão


A fusão não dura apenas o tempo da gravidez, deve se prolongar durante as primeiras semanas de vida da criança, que precisa da mãe para sobreviver. Portanto, o nascimento não aparece como uma primeira separação. Embora o cordão umbilical que liga o bebê í  sua mãe esteja efetivamente cortado, ele perdura, psí­quica e simbolicamente, pelo aleitamento, mas também por todos os cuidados maternos que pouco a pouco vão dando í  criança o sentimento de sua própria existência.

Separações precoces demais

Rafael, que em breve irá completar seis anos, tem dificuldades para falar. Tropeça nas palavras, que ficam bloqueadas como se estivessem se recusando a sair. Sua gagueira começou quando ele tinha 18 meses, no momento do aprendizado da linguagem. Rafael é acompanhado por um fonoaudiólogo que, por ocasião de uma avaliação, lhe perguntou o que tinha acontecido na vida dele que pudesse explicar sua gagueira, mas o menininho se recusou a falar sobre isso com ele, tal como se recusa atualmente a fazê-lo comigo. Então é sua mãe que me conta sua história: o filho tinha mais ou menos 18 meses quando ela derramou óleo fervendo de fondue sobre toda a parte inferior do próprio corpo. Com queimaduras de terceiro grau,
precisou ficar internada muito tempo. Como os serviços hospitalares finalmente entenderam que não se deve separar os filhos dos pais, Rafael tinha autorização para ver a mãe, mas a cada vez batia nela violentamente.
Parece evidente que essa separação precoce provocou no menino uma angústia determinante, responsável tanto por sua agressividade contra a mãe quanto por sua gagueira. Por volta dos 18 meses, estava entrando na fase de oposição, perí­odo em que as crianças dizem “não” a tudo para se afirmar como seres autônomos e se separar um pouco dos pais. Em vez de dizer não, Rafael batia na mãe, a fim de puni-la; aos seus olhos de criança aindamuito dependente, a mãe eramá por estar doente, já que ele vivia a internação como um abandono. Batia nela para forçar um contato difí­cil de se estabelecer, devido ao afastamento e aos encontros espaçados, que duravam apenas o tempo de uma visita.A ausênciamaterna criava nele uma carência relacional que ele se esforçava para paliar batendo.Nele, a agressividade era mais fí­sica que verbal. Não conseguia materializar e pôr palavras no trauma que a separação precoce da mãe representava para ele. Então, desde aquela época guarda as palavras como se tivessemedo de perdê-las também,medo de se separar delas. Sua mãe me diz claramente: “Sou obrigada a fazê-lo repetir três vezes a mesma coisa, assim ficamos mais tempo juntos.” Podese então pensar que Rafael gagueja para forçar amãe a escutá-lo mais, a estar mais atenta a ele, a lhe dedicar mais tempo.
De fato, a linguagem é um extraordinário separador. É o fim do pele com pele, da comunicação que se dá apenas pelo toque, pelas mí­micas. Ao aprender a falar, a criança toma distância dos pais; entre eles passará a haver as palavras, as palavras por meio das quais a criança se afasta, particularmente dizendo “não”, mas também dizendo “moi” (eu) e depois “je” (eu)*. A criança sempre começa dizendo “moi”, afirmação de si mais gloriosa e evidente do que o “je”, mais modesto. Aliás, durante toda a nossa vida o “moi” virá reforçar o “je”quando tivermos necessidade de dar mais peso a nossas palavras: “Moi, je pense que…” (“EU acho que…”), “C’est moi”(“Sou EU”), como se, por obra e graça do “moi”, o “je” se tornasse indiscutí­vel.
Portanto, ao reter as palavras, Rafael retém sua mãe perto de si de maneira regressiva. Trata-se, aliás, de uma mãe de muito valor, que entende claramente que grande parte de seu grude com o filho se deve í  culpa de não ter cuidado o suficiente dele por causa da internação. Posteriormente, sofreu um aborto que a aproximou ainda mais de Rafael.

Viver é se separar para crescer e ganhar autonomia. Contudo, existem separações “naturais”, í s quais a própria criança aspira í  medida que se desenvolve e adquire novas capacidades, e separações impostas, a internação de uma mãe, por exemplo, sempre dolorosas, í s vezes dramáticas.
Em 1945, René Spitz observou a reação de bebês precocemente separados da mãe e descreveu sob o termo “hospitalismo” “o conjunto de perturbações fí­sicas e mentais devidas a uma carência afetiva nos 18 primeiros meses de vida, seja porque a criança foi abandonada, seja porque teve de ser colocada numa instituição ou hospitalizada por um longo perí­odo”. O quadro de Spitz se aplica também “í s crianças que sofrem repetidas separações da mãe e í quelas que recebem da parte dela cuidados nitidamente insuficientes, sem que a maternagem de outras pessoas venha compensar essa falta”.
Quais foram as observações de Spitz? Durante o primeiro mês de separação, a criança se mostra triste, chora sem motivo aparente, mas busca o contato tentando desesperadamente agarrar qualquer adulto que passe por ela. No segundo mês, a tristeza continua, mas a criança empenha menos energia na busca de contato. Seu desenvolvimento fí­sico fica perturbado e, freqí¼entemente, ela perde peso. Finalmente, a partir do terceiro mês, ao mesmo tempo ansiosa e indiferente, a criança recusa todo contato. Geralmente deitada de barriga para baixo, a criança tem insônia, recusa alimento. Seu sistema imunológico se enfraquece e ela adoece facilmente. Seu retardo psicomotor se generaliza, tem menos tonicidade que as outras crianças, mal consegue ficar sentada ou nem o consegue, não tenta andar…
Depois de três meses de separação, a expressão de seu rosto se enrijece, o olhar parece ausente. A criança não sorri, mas tampouco grita ou chora, emitindo, no lugar disso, uma espécie de gemido enquanto faz movimentos ou gestos repetitivos, comumente chamados de estereotipias. Quanto mais cedo o filho é separado da mãe, mais graves são os distúrbios, ainda que possam ir se atenuando com o reencontro. Entre três e oito meses de idade, perí­odo em que se forma a relação objetal com a mãe, se a separação durar mais de cinco meses, os distúrbios serão irreversí­veis. A partir dos seis meses, uma certa forma de relação com a mãe já se estabeleceu embora a identificação com uma imagem estável ainda não seja possí­vel. A criança terá distúrbios do desenvolvimento psicomotor mais ou menos reversí­veis, uma fragilidade fí­sica que fará dela um alvo fácil para todo tipo de infecções banais e, sobretudo, distúrbios de comportamento que vão de distúrbios do humor a um retraimento que pode ser chamado de autista.
Sem dúvida, atualmente ninguém pensaria em separar uma criança doente da mãe. Na época de Spitz, as coisas eram diferentes. Suas observações viriam revolucionar o mundo da pediatria e da neonatologia,mostrando de maneira indiscutí­vel que a criança não era, ao contrário do que se queria crer, apenas um tubo digestivo. Descobria-se, com grande espanto, que o bebê é uma pessoa, dotada de sensações, de sentimentos (não elaborados). Não tem apenas necessidades vitais (ser alimentado, lavado), mas também necessidades afetivas (ser amado, estimulado).

Os primórdios do apego

Outro dia, em Balagne, achei que era um herói. Andando por uma estrada rural, vi umrebanho de ovelhas vindo na minha direção, seguido de pastores que gesticulavam e gritavam para que eu detivesse os animais. Postando-me no meio da via, também me pus a gesticular, esgoelando-me com as ovelhas para convencê-las a deter seu avanço.O caminho estava deserto, elas não corriamnenhumperigo; por que aquele ataque de autoridade por parte dos pastores? Porque uma delas acabara de parir e, em vez de cuidar de seu cordeiro, seguira os outros animais que se afastavam movida por seu instinto gregário. Logo, o cordeiro corria perigo de morte. Se, durante as três primeiras horas depois do nascimento, a mãe não ficar perto dele para alimentá-lo, lambê-lo, limpá-lo, cheirá-lo e aquecê-lo, já não poderá fazê-lo depois porque não reconhecerá o filhote e nenhuma outra ovelha poderá reconhecê-lo em seu lugar.
É sem dúvida fácil entender o quanto me orgulho de ter conseguido deter o rebanho, autorizando assim o encontro da mãe comseu recém-nascido e salvando dessemodo umcordeiro em perigo por ter sido abandonado pela mãe. Claro, o interesse dessa “façanha”não está em me cobrir de glória; se relato esse episódio, é para mostrar a importância do que se chama estampagem sensorial, a partir da qual a relação entre uma mãe e seu bebê poderá se estabelecer. A vida do bebê e sua capacidade de se relacionar com os outros, a começar pela mãe, estão fundadas numa base orgânica, biológica e bem pouco psicológica. Pois, como vocês devem ter entendido, o que vale para as ovelhas e os cordeiros se aplica aos animais racionais que somos, tal como mostraram John Bowlby e os etólogos. Para Bowlby, o apego de que é capaz um bebê não é resultado de uma aprendizagem; é uma reação primária, uma manifestação de sua estrutura instintiva de pequeno homem.Através do contato carnal – cheiro, som da voz, textura da pele, suavidade dos gestos – é que se cria um mundo de sensorialidade em que vai se enraizar e desenvolver a capacidade de apego com que a criança nasce. Graças a essa sensorialidade, a criança e a mãe vão poder se reconhecer e se apegar mutuamente.
Pois, se o bebê precisa fusionar, felizmente a mãe também está apta para isso. Durante os nove meses de sua gravidez, ela desenvolveu um sistema de sinais – que é também um sistema de comunicação – adaptado a seu bebê. Essa fusão orgânica não termina com o nascimento, ela perdura durante os três primeiros meses, que Winnicott chama de “os cem dias de amor louco”. A mãe fica totalmente voltada para o bebê, devotada a ele, cheia de uma solicitude especial, que o pediatra inglês também designa pelo nome de “preocupação materna primária”. Durante esse tempo é que se funda o sentimento mútuo de pertença deles.
O bebê não se percebe como diferente da mãe, é seu prolongamento, simbolizado pelo aleitamento. Quanto í  mãe, tem a impressão de que o filho faz parte dela. Identifica-se com ele, sabe o que ele sente e, como ele, fica num estado de dependência e vulnerabilidade. Não se contenta em alimentá-lo, cuida dele, lava-o, embala-o, acaricia-o, carrega-o, tenta decifrar seus choros e satisfazer as necessidades que eles exprimem, brinca comele, canta-lhe canções de ninar e lhe murmura palavras doces, adaptando sempre suas respostas e seus cuidados ao bebê, garantindo-lhe assim uma continuidade de existência. Entre a mãe e seu bebê, os movimentos são recí­procos, um e outro se influenciam mutuamente.
Para Winnicott, o crescimento afetivo da criança passa por três etapas. Uma etapa de dependência absoluta, fisiológica e afetiva, durante a qual o bebê ainda não tem condições de tomar consciência dos cuidados maternos e não diferencia necessidade de falta. Em seguida, entre 6 e 18 meses, vem o tempo da dependência relativa. Quando a mãe se ausenta, o bebê chora, pois aparece a angústia, sinal de que ele percebe sua dependência. Quando tem fome, reclama balbuciando ou chorando, e sua mãe satisfaz sua necessidade. Em pouco tempo, contudo, apenas a satisfação de sua necessidade vital já não lhe basta; apesar de tudo, subsiste uma falta, que é falta do outro e de onde nascerá o desejo. A criança começa a existir como sujeito e percebe uma diferença entre si mesma e o outro. Enfim, a partir dos dois anos, por ter introjetado a imagem e os cuidados maternos – já é capaz de conservar mentalmente a imagem da mãe e sabe que ela voltará para responder a suas necessidades -, a criança poderá obter a independência – independência muito relativa, claro -, graças sobretudo í  aquisição da linguagem. Se o pequeno Rafael ficou bloqueado nessa etapa, foi porque foi privado da presença da mãe naquele momento tão fundamental, o que nos mostra que a separação transcorre de uma maneira melhor se for acompanhada e estimulada.
Devemos sublinhar aqui que, embora a fusão seja essencial durante os primeiros meses, tem de terminar gradualmente graças í  mãe, que pouco a pouco vai dando respostas menos adaptadas a seu bebê, possibilitando assim que ele se perceba diferente dela. Aquela que não for capaz dessa desadaptação “fracassa”, nas palavras de Winnicott, “ao não dar a seu bebê motivos para sua raiva. Ora, o bebê que, apesar de ter dentro de si uma quantidade habitual de elementos agressivos, não tem motivos para estar com raiva se vê diante da dificuldade particular de fundir agressividade e amor”. Em outras palavras, a mãe tem de poder renunciar a seu desejo de ser uma mãe perfeita, sempre satisfatória, para ensinar ao bebê a frustração que lhe dará o gosto de ir conquistar o mundo a fim de suprir a falta sentida.

O apego impedido


Graças a Winnicott e particularmente a Spitz, todos os especialistas da primeira infância são agora “fusionistas” convictos e, tanto em neonatologia como em pediatria, todos têm consciência da necessidade de favorecer o apego. Já contei a história de uma jovem mãe que padecia de psicose puerperal, essa forma de psicose, felizmente rara, em que a mulher vê o filho como um representante do diabo e quer se livrar dele, matá-lo. Por ser perigosa para o filho, seria lógico afastá-lo dela e confirmar a não-fusão que ela instaura devido a sua patologia. No entanto, o que se percebe é que, diante de uma mãe impedida – sejam quais forem as razões desse impedimento -, o bebê, sempre ávido, agarra-se a ela ainda mais. Por meio de suas mí­micas, balbucios, movimentos, demonstra uma grande capacidade de captação, como se pressentisse que não deve poupar esforços para vincular a mãe a ele. Com todas as suas forças, tenta atrair o olhar que o evita. Se, apesar da energia despendida, a mãe não responder a suas solicitações, a criança vai se esgotar e desistir, voltando-se cada vez mais sobre si mesma até apresentar todos os sintomas do hospitalismo de Spitz – a menos que uma mãe substituta, que pode ser o pai, venha garantir a função de maternagem de que ela necessita.
Nas unidades materno-infantis, faz-se de tudo para favorecer o apego. No caso que acabei de mencionar, reservamos para a mãe e seu bebê momentos compartilhados, sempre mediados pela presença de um terceiro pronto para intervir em caso de acesso de violência materna, pois o essencial era que a criança pudesse encontrar, através do contato com ela, ainda que forçado, certa segurança, e que a mãe, apesar de sua patologia, conseguisse estabelecer o esboço de um ví­nculo com seu filho. Nessa fase, a separação parecia mais prejudicial que o apego, por mais imperfeito que este fosse, tanto mais que, sendo a patologia da mãe muitas vezes transitória, ela tinha todas as chances de poder criar posteriormente uma relação satisfatória com seu bebê.
Para haver fusão é preciso haver dois. Cada qual por seu lado, a mãe e o bebê têm de estar dotados de capacidade de fusão. Esta fracassa – em todo caso, transmite menos segurança para a criança – quando um dos dois está impedido. É o que í s vezes acontece quando a mãe está deprimida, por exemplo. A depressão desempenha então um papel no estabelecimento da interação: a mãe está menos disponí­vel,menos atenta,muitas vezes se limita aos cuidados essenciais que devem ser fornecidos ao bebê e o acalenta menos, acaricia-o menos, brinca menos com ele; há transmissão de afetos depressivos da mãe para o bebê, que terá menos capacidade de entrar em contato com as pessoas e os objetos, de estabelecer relações.
Isso implica a necessidade de apoiar e ajudar as mães em dificuldade, para que elas possam, apesar de tudo, oferecer ao filho a segurança de que ele precisa nos primeiros meses, pois é nesse perí­odo que se cria um apego mais ou menos seguro que será determinante para sua futura aquisição de autonomia.
Uma psicóloga canadense, MaryAinsworth, observou crianças de 12 a 18 meses por ocasião de uma curta ausência da mãe. Algumas manifestam um pouco de angústia, depois retomam suas atividades e são capazes de entrar em interação com outros adultos; são as crianças seguras. Outras vão manifestar pouca reação de desespero ante a ausência da mãe, mas a ignoram quando volta; são as inseguras evitativas. Outras, por fim, vão exprimir sua angústia e seu desespero durante toda a sua ausência, e terão muita dificuldade de recuperar a paz quando ela volta; são as inseguras resistentes.
Quanto mais intensa a fusão, mais segurança a criança terá retirado dela e mais capaz será de suportar a ausência materna, que ela então aproveitará para explorar o mundo externo. A criança insegura, por sua vez, buscará sempre a mãe ou a evitará de modo evidente, sem por isso conseguir investir outras pessoas ou outros objetos. Para a primeira, passado o movimento inicial de ansiedade, a mudança se revela divertida, interessante, excitante; para a segunda, continua sendo fonte de angústia. Na ausência da mãe, privado de referências, o bebê se retrai, como se o único objeto estável de tranqí¼ilização fosse seu próprio corpo. Em vez de se abrir para o exterior, a criança insegura é autocentrada e seu aparelho psí­quico não lhe serve para entrar em contato com o mundo e sim para remoer seus pensamentos.
Se a criança consegue se separar, é porque está convencida de que vai encontrar a mãe um pouco mais tarde, o que supõe que a mãe tenha sido “suficientemente boa” – segundo a expressão agora consagrada -, isto é, que lhe tenha dado cuidados, atenção e devoção suficientes. Do contrário, terá sempre uma fragilidade, reavivada a cada separação.
Embora eu costume afirmar que nada nunca é imutável e que tudo pode se mover sem parar – no que de fato acredito -, deve-se reconhecer que, de certo modo, boa parte do desenvolvimento da criança e de sua capacidade de adquirir autonomia e de crescer está enraizada nos seis primeiros meses de vida. Continuo no entanto convencido de que um apego inseguro é melhor do que nenhum apego. Pois, se no primeiro caso a criança pode ter dificuldade de se desapegar, no segundo estará impossibilitada de estabelecer outros laços.
Alguns nascem privados dessa capacidade de apego, particularmente as crianças autistas. Por muito tempo, ouviu-se que os pais eram em parte responsáveis por essa patologia. Ora, constata-se que o autismo começa in utero, pois estaria inscrito no funcionamento neurológico do feto. Pesquisadores do CNRS mostraram que nos autistas, já durante a gravidez, certas zonas cerebrais não são ativadas, o que provoca um atraso do desenvolvimento. Um autista, por exemplo, é sensí­vel a um barulho de fricção, mas não reage í  atroada de um trem passando; não há nele discriminação auditiva. No fundo, o autista não diferencia a voz da mãe, e é em parte por isso que não pode interagir com ela. Durante certo tempo, é possí­vel que a mãe não perceba essa incapacidade, porque projeta no seu bebê aptidões que ele não tem, interpreta suas reações de maneira positiva, transforma seus grunhidos em balbucios. No entanto, o autista não consegue fusionar. Nasce isolado em si mesmo. Nascendo isolado, privado de capacidade de contato, sem poder interagir com a mãe, terá as maiores dificuldades de estabelecer ví­nculos posteriormente.

O apego atrás das grades


Leo é um menino cativante, vivo e inteligente, mas demonstra uma agressividade exagerada para com seus amiguinhos da pré-escola. Também manifesta grande ansiedade, que se revelou depois de um incidente aparentemente trivial. Um dia em que ventava muito, como tantas vezes acontece no Sul da França, o lustre do quarto dele começou a tremer sob o efeito de uma corrente de ar e depois caiu e quebrou. Isso criou no menino tamanho estado de pânico que ele não quis mais ficar no quarto. Desde então, instalou-se no quarto da irmã, mas nem isso conseguiu acalmá-lo totalmente.
Os pais de Leo se separaram quando ele tinha 20 meses. A guarda da criança ficou com a mãe. Porém, num conflito profissional, ela perdeu o controle e agrediu um de seus empregadores ferindo-o, o que acarretou sua prisão por lesão corporal.Na época, estava grávida e deu í  luz uma menininha enquanto estava presa. Portanto, quando ela saiu da prisão, Leo reencontrou uma mãe potencialmente perigosa e uma irmãzinha totalmente desconhecida que tinha podido desfrutar da sua mãe, enquanto ele estava privado dela e fora confiado aos avós. Era como se sua mãe o tivesse abandonado para melhor se dedicar a essa irmã, que lhe parecia mais rival ainda por ter lhe tirado fisicamente a mãe.
Deve-se reconhecer que esta é uma situação um pouco complicada e de difí­cil compreensão para uma criança tão pequena. Leo bate no mundo, como que para puni-lo por não ter lhe dado o lugar que lhe cabia. Ao mesmo tempo, identifica-se emparte í  agressividadematerna. Está na idade emque a criança percorre a gama de todos os medos,mas seu medo tão particular do lustre que se quebra certamente o remete í  violência materna capaz de “quebrar” as pessoas se elas a desagradarem.
Leo precisa de uma terapia para expor suas angústias e aprender a verbalizá-las. Na terapia, consegue falar de sua agressividade e não poupa esforços para controlá-la, embora, num primeiro tempo, isso continue sendo difí­cil para ele. Pega brinquedos e logo em seguida os rejeita, violentamente, dizendo em seguida para se desculpar: “Eu queria ele, mas não gostava dele.”Progride, embora continue instável,manifesta muita impulsividade em seus atos e uma vontade de mandar em tudo e controlar tudo, como se quisesse que o mundo incompreensí­vel se dobrasse a seus desejos. A mãe faz o possí­vel para controlar os transbordamentos do filho; no entanto, sente-se que ela se contém para não ceder í  própria agressividade. Parece ter dificuldade para entender por que o filho cria tantos problemas enquanto a filha é tão engraçadinha, apesar de ter nascido em condições difí­ceis e ter passado os primeiros meses de vida na prisão perto dela.
A explicação está justamente no fato de a filha ter podido ficar com ela. Hoje em dia, uma criança pode viver com a mãe presa durante seus 18 primeiros meses de vida, e é preciso comemorar esse fato. Essas mulheres, geralmente em dificuldade em outros aspectos da vida, revelam-se excelentes mães, porque, na prisão, têm tempo livre e disponibilidade para cuidar do filho, ao passo que, fora, seriam mais tóxicas, talvez, em todo caso menos atenciosas. Ao mesmo tempo, a criança que vive em condições carcerárias, com tudo o que isso supõe de encerramento, mas também de fusão, muitas vezes manifesta um temor bastante intenso do mundo exterior. Deve-se, por isso, incentivar sua estada em creche durante o dia para acostumá- la a desgrudar da mãe e enfrentar o mundo externo.
Se a irmã de Leo está bem é porque pôde desenvolver um apego seguro com a mãe, ao passo que o menininho se sentiu rejeitado, mostrando uma vez mais o sofrimento que uma separação precoce da mãe pode provocar.

Sobreviver ao abandono

Esta é a história de duas irmãs que poderí­amos descrever de modo um tanto caricatural dizendo que uma era bonita e a outra, inteligente. Reforçando a caricatura, a “inteligente” se tornou professora e assim continuou ao longo de toda a sua vida solitária; a “bonita” teve casos, sempre passageiros e infelizes. De um desses relacionamentos nasceu uma menina, de quem a tia cuidou muito. Tendo crescido, essa menina teve por sua vez casos sem futuro, dos quais nasceram vários filhos que ela abandonou.
É com uma dessas crianças que me encontro, e com sua tia-avó, a “inteligente”. Adolescente difí­cil, exprime por seu comportamento toda a infelicidade de sua curta existência. Abandonado pela mãe no sétimo dia, foi colocado numa famí­lia substituta, sem nenhum contato nem com a mãe nem com a avó. Somente sua tia-avó continuou a visitá-lo de tempos em tempos.Maltratado pelo pai de sua primeira famí­lia substituta, esse menino foi colocado numa nova famí­lia, na qual foi agredido e abusado. Aluno brilhante num primeiro momento, teve no entanto grandes dificuldades com seus colegas de escola, que costumavam transformá-lo em bode expiatório. De tal modo que, paulatinamente, foi desinvestindo totalmente os estudos e se fechou num comportamento agressivo e violento.
É então um jovem adolescente, e um juiz de menores não encontrou nenhuma solução melhor do que confiá-lo a sua tiaavó, sem recomendar nenhum apoio psicológico para nenhum dos dois. A pobre mulher de 70 anos logo se sentiu suplantada por aquele moço, que começou a espancá-la, batendo na cabeça dela enquanto repetia que não queria que ela morresse.A tal ponto que, já sem forças, acabou pedindo que ele fosse novamente colocado em alguma famí­lia. Ela me conta a história, chorando: “Nada na minha vida deu certo. Esse menino era como o filho que não tive, mas, como minha irmã e minha sobrinha, não consigo fazer outra coisa senão abandoná-lo.”
Esse adolescente mostra uma incapacidade de estabelecer ví­nculos. Abandonado precocemente, sempre jogado de famí­lia em famí­lia, numa assustadora carência afetiva, está como que castrado de sua capacidade de entrar em contato e instaurar uma relação com quem quer que seja. Ao mesmo tempo que sabotam qualquer esboço de ví­nculo, a agressividade e os tapas são o único modo de comunicação que ele consegue conceber, porque foi o único que conheceu e a única maneira que ele tem de mostrar í  tia-avó que gosta dela.
Independentemente de quais sejam as razões do abandono – que não compete a mim julgar -, pode-se imaginar o rombo que ele cria? Assim como expulsa a placenta, a mãe expulsa seu bebê e imediatamente o rejeita, privando-o da fusão de que ele precisa. O corte do cordão umbilical, mais que um desligamento, é um arrancamento.
A criança sempre pensa que deve ter sido muito má para que sua mãe a tenha abandonado. Experimenta um sentimento de culpa e de vergonha que, logo de iní­cio, mina os rudimentos de sua auto-estima. Embora tenha dificuldade de conceber que sua mãe seja má, fica no entanto na ambivalência, presa de acessos de ódio emrelação í quela que não quis amá-lo. O abandono é a certeza de não ser amado e, pior ainda, de não ser amável.
Felizmente existem abandonos que terminam menos mal, por uma adoção ou uma colocação em famí­lia substituta. Mas isso teria de ser feito nas primeiras semanas de vida, para que a criança tenha a possibilidade de criar um apego com uma mãe substituta. Em Lodz, Polônia, um certo Janusz Korczak entendeu isso muito bem. Em 1912 – portanto, bem antes dos trabalhos de Spitz -, esse médico criou um orfanato-modelo.Modelo porque, em vez de passar de mão em mão na fila das mamadeiras e dos banhos, cada criança era acompanhada sempre por uma mesma puericultora. Podia reconhecer seu contato, sua pele, seu cheiro, sua voz, suas entonações, o que lhe garantia uma continuidade que substituí­a a continuidade orgânica com a mãe biológica. Graças í  inteligência e í  sensibilidade desse médico genial – que mais tarde se recusou a deixar as crianças partirem sem ele nos trens da morte -, os pequenos órfãos de Lodz tinham um desenvolvimento mais harmonioso e reais capacidades de apego.
O medo do abandono é sem dúvida uma das coisas mais bem distribuí­das do mundo. Para conjurar esse medo fundamental, quase constitutivo da natureza humana, todos os pais contam aos filhos contos de fadas nos quais o herói ou a heroí­na foi abandonado(a)… Assim a criança pode avaliar a sorte que tem de ter perto de si pais que lhe leiam esse tipo de história. No entanto, por mais que se leiam e releiam todos os contos de fadas da terra, ninguém nunca conseguirá se livrar totalmente do medo do abandono. Como se, no fundo de nós mesmos, guardássemos as marcas do tempo da fusão em que não podí­amos satisfazer sozinhos nossas necessidades e da angústia arcaica de que a ausência da mãe se prolongue indefinidamente, pondo-nos então em perigo de morte. No fundo de cada um de nós há uma criança insegura adormecida.
Existem duas maneiras de perder e de se separar. í€s vezes, a decisão é nossa; í s vezes, somos submetidos a isso. No primeiro caso, a perda se torna suportável, porque podemos controlá- la; no segundo, é mais difí­cil. A criança abandonada está condenada a sofrer o inaceitável. Por isso, para tentar protegêlas um pouco dessa dor, í s vezes se diz í s crianças abandonadas que a mãe delas morreu, sendo a morte a única razão aceitável do abandono. Pois a morte é sempre um abandono. Quando nossos pais morrem, quando somos abandonados por uma pessoa que amamos, todos nós, crianças e adultos, ficamos í  mercê desse sentimento de abandono que provoca um desespero absoluto.
Outro dia, atendi umgaroto de 14 anos que perdeu o avô, o pai e o tio no tsunami que devastou a Indonésia. Ele diz que todo um pedaço dele foi engolido pela onda, que ele se sente abandonado porque nenhum daqueles três homens conseguiu resistir ao vagalhão para ficar com ele… Ainda que saibamos que não se pode impedir ninguém de morrer, continua aflorando, a despeito de nós mesmos, a idéia de que talvez pudéssemos… Para nos defendermos dessa culpa, nós a voltamos contra o outro, que se torna um parente abandonador a despeito de si mesmo.
O sentimento de abandono não poupa nem mesmo os psiquiatras. Minha mãe morreu faz quatro anos, mas a cada aniversário meu, por não escutar seu “Feliz aniversário, meu docinho”, eu me sinto um pouco abandonado. Somos todos órfãos inconsoláveis, abandonados crônicos.

3 comentários em “me larga”

  1. Gostei bem!
    Mas…vendo o “me larga”, me deixe sair do profundo…NÃO TE LARGO! …. mas c já largô eu! 🙁

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