A Ira Feminina

A Ira Feminina

Sandra Moreira Ebisawa

Sinto-me dentro de um caldeirão, sendo cozinhada através dos tempos, com ingredientes do pecado original – a culpa da decadência humana é minha, a força poderosa que amedronta, a que destrói ou fortalece, sou eu. A responsabilidade de resignificar essa história, descobrindo sua essência bem dentro de mim, é minha também.

Sou Mulher. Perceber a “crueldade feminina” diante do sofrimento imposto í  mulher através da história de nossa gênese enquanto seres humanos, é tarefa hercúlea. Requer ponderação, enquanto busco dentro de mim, os primórdios do meu próprio sofrimento, para entender e dar í  luz a verdadeira redenção feminina, que eu tanto necessito para simplesmente ser. Acredito ser esse o grande sofrimento da alma feminina.

Tantas mulheres morreram pela culpa, pelo veredicto que se impôs a elas pela história. Mártires e sacrificadas somos nós até hoje…A história sempre contradisse o verdadeiro anseio feminino. O anseio de libertação. Para mim este tem sido um exercí­cio de auto conhecimento, de redenção, um verdadeiro purgatório. Sentar-me aqui e escrever sobre a crueldade, não é confortável. Mas me parece fundamental que esse estado seja trazido í  minha consciência, a fim de que eu possa utilizá-lo. É como uma cozinheira que não poderá alquimizar os alimentos sem saber como lidar com o fogo.

O que sinto agora é como um parto. Algo dentro de mim está se desenvolvendo, um tipo de consciência que antes não estava aqui. Esse incômodo permanente que até agora não tinha um nome, já está em mim há muito tempo. Tantos erros já foram cometidos por causa disso, ciclos internos atropelados, gritos estridentes e mudos ecoam ainda dentro de mim. Meus homens e meus filhos já sofreram muito com esse desvario. E ainda assim, sou eu a responsável. Preciso parir, dar í  luz, emergir e libertar a Lilith amaldiçoada de dentro de minhas células.

A primeira crueldade que a culpa gera é a submissão de minha força natural í s leis de dominação da terra, de aperfeiçoamento da natureza (como se isso fosse possí­vel). Fui eu quem neguei í  Adão a doce ilusão de sua supremacia, fui eu quem nos igualou e fui banida, me transformando num demônio. Fui a culpada pela expulsão do paraí­so.
Como posso ser í­ntegra e feliz com toda essa carga sobre meus ombros? Ainda não descobri, mas vou. Esse banimento em mim me remete a Lilith, ela está aqui entre nós, dentro de nós e precisa ser rendida. Precisamos dessa redenção. Estamos banidas de nossa Terra, de nosso lugar no mundo. Fomos condenadas e até hoje, mesmo com todas as conquistas, continuamos excluí­das, amaldiçoadas.

í€s vezes me dá a impressão de que toda essa “conquista feminina” foi orquestrada pelas forças “poderosas” que determinaram o próprio banimento da mulher. Posso até estar sofrendo de paranóia, o que seria mais do que compreensí­vel, mas o que percebo no processo de emancipação da mulher, é uma aliança entre a mulher e o homem para fortalecer o império contra a alma feminina.

Que me perdoem os entendidos, mas creio que posso devanear, já que todas as informações oficiais são duvidosas. Me causa estranheza que o feminismo tenha surgido ao mesmo tempo em que a industria farmacêutica lança seu mais poderoso produto no mercado: a pí­lula anticoncepcional. As mulheres passaram a contar com o apoio da ciência para não conceber. Não precisam mais estar atentas aos seus ciclos naturais se quiserem evitar filhos, seus homens estão eternamente desobrigados da responsabilidade com a fertilização, já que passaram a prescindir até dos preservativos, não precisam mais conhecer os perí­odos férteis da mulher.

Um verdadeiro incentivo a negligencia masculina ao que é essencialmente feminino, e isso com o apoio do movimento de libertação da Mulher. Que desatino! Esse foi o maior crime contra a alma feminina. Quantas conseqí¼ências desastrosas não surgiram dessa “conquista”? Ao utilizar a pí­lula e levantar a bandeira da liberdade sexual, gerações inteiras de mulheres passaram a enviar mensagens a seus cérebros de que não havia necessidade de produzirem determinado hormônio, para 40/50 anos depois, na menopausa, precisaram repor os mesmos hormônios artificialmente. Quanto lucro para essas indústrias! Um planejamento digno de admiração, não fosse essa a principal arma contra a mulher, representante mais significativa da alma feminina na humanidade. Nesse momento da história, nós agimos exatamente como Lilith, nos privando da força natural feminina e utilizando essa mesma força contra nós mesmas.

Hoje nos vemos distanciadas de nossos ciclos naturais, nos perdemos quando as sensações da energia feminina emergem em nosso corpo. Nos perturbamos com a menstruação, com a menopausa, com nossa capacidade de sentir orgasmos. Não sabemos mais parir ou amamentar sem o apoio da ciência, que passou a ser um selo de qualidade em tudo que nós fazemos e sentimos. Ciência í  serviço da industria, que está a serviço do capitalismo, que está a serviço da conquista da terra, do território, da alma feminina.
A ira feminina voltou-se contra nossos próprios corpos, desejávamos o sentimento de pertencer e para isso nos aliamos ao patriarcado, reproduzindo seu modelo…seu modus vivendi.

Em nossos corações sabemos que a ira feminina está presente em nossos atos e pensamentos. Sempre que nos sentimos culpadas por não conseguir estar com nossos filhos, por não conseguir entregar um trabalho no prazo ou mesmo por não corresponder aos desejos “sexuais localizados” de nosso parceiro, estamos experimentando a ira feminina atuando em nós. Ela se manifesta através de nossas frustrações pessoais, profissionais e sociais.

Ela se manifesta nos cânceres de mamas, de ovários, de útero. A ira feminina se expressa também através dos maremotos, terremotos e dilúvios, numa tentativa desesperada de salvar a Terra. Tantas são suas manifestações e tão grande o seu poder. Procurando uma explicação que me satisfizesse para o fato da mulher atual estar enfartando tanto quanto os homens, encontrei o seguinte ao pesquisar a palavra enfarte:Infarto: área de necrose conseqí¼ente í  baixa de teor de oxigênio; enfarte. Enfarte: ato ou efeito de enfartar, fartação; empanzinamento. Isso me sugeriu a asfixia que a alma feminina experimenta atualmente. Com seu corpo pedindo socorro! Precisando ardentemente ser regida por sua própria natureza! Uma analogia í  Mãe Terra e suas terrí­veis manifestações em resposta í  negligência de seus ciclos, suas necessidades.

Um dia desses uma criança me perguntou como o homem pode ser sido a primeira criatura se não existia a mãe dele. Como ele poderia ter nascido? Foi aí­ que, tentando lhe responder, me lembrei de uma conversa que tive com uma amiga, chegamos í  conclusão que o homem foi feito do pó, ou seja, do barro, da terra, sí­mbolo do feminino, onde Deus (céu, masculino) soprou e criou a existência humana. Do alto de seus 9 anos, ela fez uma carinha iluminada e disse: Agora sim, eu entendi mais ou menos. Pois acho que eu também estou começando a entender mais ou menos.

Mas de uma coisa eu já começo a entender com mais clareza: é vital que nossa essência seja resgatada e que a partilha entre as mulheres seja estimulada, se quisermos ter uma representação autêntica da Alma feminina em nosso mundo. Só assim nossos filhos não serão mais “roubados” pela sociedade para se tornarem os prisioneiros, guardiões do portal invisí­vel que nos separa de nós mesmas e nos mantém banidas.

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