Dia 19

mitobelezaDia 19 — O livro de não ficção favorito
O Mito da Beleza
 

“O Mito da Beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres”, de Naomi Wolf, foi publicado no Brasil em 1992. Hoje é difí­cil de ser encontrado, apesar de ainda ser bastante atual. O texto da quarta capa permite uma pálida idéia do conteúdo do livro:

“Estamos em meio a uma violenta reação contra o feminismo que emprega imagens de beleza feminina como arma polí­tica contra a evolução da mulher” – diz Naomi Wolf nesse livro de leitura agradável, repleto de dados estatí­sticos e observações sagazes.
Liberada, profissionalmente capaz de competir com os homens em todos os ní­veis, ativa, apta a lidar com a dupla jornada – trabalho e lar -, a mulher de hoje enfrenta, na realidade, uma tripla jornada. Nas horas de folga de suas múltiplas atribuições, ela investe obsessivamente em sua beleza, para manter a juventude e a formosura que lhe permitirão preservar justamente trabalho e lar.
Versão moderna dos controladores sociais instituí­dos pela Revolução Industrial, o mito da beleza não deixa a mulher vencer seu maior dilema: o espelho nem sempre lhe retornar as imagens que a pornografia e a publicidade instituí­ram como os novos sí­mbolos do sagrado.
Com O mito da beleza Naomi Wolf surpreende quem achou que a mulher havia percorrido todos os caminhos possí­veis e reatualiza as trilhas apontadas por pioneiras como Gloria Steinem e Germaine Greer.

Entrevista de Naomi Wolf í  Revista Época
http://revistaepoca.globo.com/ideias/noticia/2013/01/naomi-wolf-cultura-reprime-o-desejo-das-mulheres.html

Naomi Wolf: “A cultura reprime o desejo das mulheres”

PAULO NOGUEIRA*

CONCEPí‡í•ES Naomi Wolf, feminista americana. Seu novo livro, Vagina, mostra como a ciência e a cultura trataram, historicamente, a sexualidade da mulher (Foto: Francis Hills/Corbis Outline)CONCEPí‡í•ES
Naomi Wolf, feminista americana. Seu novo livro, Vagina, mostra como a ciência e a cultura trataram, historicamente, a sexualidade da mulher
(Foto: Francis Hills/Corbis Outline)

Ao publicar o mito da beleza, em 1991, Naomi Wolf se tornou uma das principais feministas do mundo. No livro, ela dizia que exigências opressivas de beleza eram uma contrapartida í  emancipação feminina. Desde então, sua carreira foi sinuosa (para alguns, errática). Acusou o crí­tico literário Harold Bloom de assédio sexual, 20 anos após o alegado acontecimento – e acabou acusada pela colega Camille Paglia de promover uma “caça í s bruxas”. No ano passado, quando completou 50 anos, em Nova York, foi presa no protesto Ocupe Wall Street. Recentemente, lançou o livro Vagina, a new biograph, cujo tí­tulo (Vagina, uma nova biografia, em tradução livre) provocou escândalo. A obra diz que o desejo e o prazer da mulher não estão na vagina ou no clitóris, mas em hormônios e neurotransmissores cerebrais.

ÉPOCA – Na seção de livros do iTunes, o tí­tulo de seu livro virou V**. Uma vergonha, não?
Naomi Wolf –
(Risos.) Sim, é uma vergonha. Por outro lado, é uma ilustração perfeita do que o livro trata em alguns capí­tulos. Termos mais degradantes para o órgão sexual feminino não suscitam tanto escândalo, por não serem rigorosos fisiologicamente. Documentei uma longa história de censura sobre as informações mais básicas da anatomia, a sexualidade e o prazer femininos. Uma repressão que se tornou cristalinamente compreensí­vel para mim. Quanto mais as mulheres aprendem sobre sua anatomia e sexualidade, mais combativas se mostram social e politicamente. Fica mais difí­cil subordiná-las, e aí­ mora o perigo. O livro está entre os mais vendidos do iTunes. Acho que o tiro saiu pela culatra…

ÉPOCA – A senhora fala no livro de sua própria anatomia e de sua vida sexual. Pretende mostrar que a fisiologia importa mais que a cultura?
Naomi –
Nunca afirmo que a fisiologia é mais importante que a cultura ou a educação. Simplesmente, parti de uma experiência pessoal: um problema em minha coluna vertebral que afetava diretamente minha vida sexual. Relutei em abordar questões í­ntimas, por causa do tabu sobre mulheres que discutem abertamente sua sexualidade. Mas não tinha outra opção. Senti-me obrigada a explicar o motivo pelo qual decidi escrever o livro. Entendi que, nesse caso, minha experiên­cia poderia e deveria ser extrapolada. Poucas coisas são tão fortes e convincentes quanto um depoimento pessoal.

ÉPOCA – A vagina é a alma de uma mulher?
Naomi –
Nunca disse que a alma da mulher é sua vagina.

ÉPOCA – Mas essa não acaba sendo uma interpretação do livro?
Naomi –
Para os que apreciam frases de efeito, talvez. Alguns crí­ticos literários, é verdade, tiraram essa conclusão. Problema deles. Como autora da obra, discordo inteiramente. Nunca disse isso, nunca argumentei isso, e o livro não tem esse sentido. Nem mesmo indiretamente.

ÉPOCA – A natureza valoriza o desejo sexual feminino como ferramenta evolutiva? A cultura negou essa ideia por tanto tempo…
Naomi –
Sim. Para mim, a parte mais importante do livro mostra como a ciência documentou o papel do desejo sexual feminino na evolução das espécies e como a cultura tentou inibi-la ao longo da história. Em experiências de laboratório, quando os impulsos sexuais de fêmeas de ratos foram deliberadamente bloqueados, elas se mostraram letárgicas também em outros aspectos do comportamento. Ao estudar a evolução e a sexualidade, fica muito clara a repressão que a cultura exerce sobre o desejo feminino – e exatamente por causa de seu potencial evolutivo.

“As leitoras de Cinquenta tons de cinza se identificam com a possibilidade de explorar, sem remorsos, sensações fora de uma sexualidade convencional”

ÉPOCA – Mulheres são mais inclinadas ao misticismo que homens?
Naomi –
O misticismo feminino foge a meu controle. Não comparo o misticismo feminino com o masculino, pois minha obra é sobre mulheres. Naturalmente, os homens acabam envolvidos, afinal a vida sexual implica ambos. Posso afirmar que o orgasmo desencadeia um formidável alí­vio na quí­mica cerebral feminina. Essa sensação, como inúmeras experiências cientí­ficas comprovam, corresponde em parte ao estado de êxtase que algumas situações mí­sticas provocam. Mas é preciso distinguir e separar transcendência e experiências fí­sicas. O orgasmo feminino, o famoso orgasmo múltiplo, realmente é mais variado e versátil que o masculino. Somos “desenhadas” assim. Portanto, potencialmente as mulheres são mais inclinadas í quela experiência que se assemelha a um êxtase transcendental – embora não se confunda com ele. Se você ler a ficção feminina contemporânea, verá quanto as descrições de prazer erótico são associadas a um “arrebatamento” e a uma “desintegração do eu”.

ÉPOCA – O que um fenômeno como o livro Cinquenta tons de cinza revela sobre a sexualidade feminina contemporânea?
Naomi –
A neurociência demonstrou que determinadas conexões cerebrais fazem algumas mulheres sentir-se excitadas e atingir o orgasmo diante de situações como um espancamento. Assim, um best-seller como esse tem a ver não propriamente com masoquismo, mas com uma atração por cenários de dominação. É um lugar-comum. O importante, no sucesso estrondoso desses livros, é que continua sendo um tabu uma mulher dizer em voz alta aquilo que a gratifica sexualmente, sem se sentir culpada ou envergonhada. As leitoras do romance se identificam com a possibilidade de explorar, sem remorsos, sensações fora de uma sexualidade convencional.

ÉPOCA – É viável misturar neurociência e a tradição tântrica?
Naomi –
Não as misturo. As descobertas da neurociência assinalam a relação do estresse como uma causa para a falta ou a escassez de prazer. Parte da população feminina tem dificuldade para atingir o orgasmo. Isso significa que a “revolução sexual” não funcionou para elas. Por outro lado, a tradição do sexo tântrico, que desvaloriza a pressa e realça a importância do “eu”, pode ter algo a nos ensinar, desde que não a reduzamos a uma espécie de “soft pornô” folclórico. Trata-se de realçar aspectos mais emocionais e menos mecânicos do sexo, como o abraço, a carí­cia ou a dança.

ÉPOCA – Clitóris versus vagina é um dilema tolo?
Naomi –
Mais do que tolo. A ciência mostrou que é um dilema equivocado. A sabedoria convencional menospreza a vagina como fonte de prazer. Mais de 90% das mulheres atingem orgasmo vaginal e clitoriano, estimulando as duas áreas ao mesmo tempo. O “partidarismo” entre regiões eróticas é besteira.

ÉPOCA – Alguns crí­ticos reclamaram que, de uma perspectiva cientí­fica, seu livro não traz nada de novo.
Naomi –
A maioria dos estudos que relato é recente e publicada apenas em jornais cientí­ficos ou acadêmicos. Os estudos que cito, além de inéditos para o público em geral, nunca tinham sido interpretados politicamente, com uma ótica feminista. Meu livro explica 5 mil anos de estigmatização do prazer feminino.

ÉPOCA – O movimento Ocupe Wall Street acabou virando muito barulho por nada?
Naomi –
De jeito nenhum. Foi e é importante, ao denunciar a fenomenal corrupção entranhada no sistema polí­tico e financeiro americano. O movimento se alastrou por várias cidades, apesar da oposição feroz daqueles que se sentiram ameaçados por ele. Houve numerosas detenções, inclusive a minha. Não obstante sua escrupulosa legalidade, pessoas foram agredidas pela polí­cia e ficaram feridas. Outras permaneceram encarceradas em condições horrí­veis. O objetivo era criminalizar o movimento como uma forma de “banditismo”.


* O romancista luso-brasileiro Paulo Nogueira é autor de O suicida feliz e O amor é um lugar comum