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Belo Horizonte, 14 de abril de 2022

Conto da Semana: Perplexidade , de Maria Judite de Carvalho

A criança estava perplexa. Tinha os olhos maiores e mais brilhantes do que nos outros dias, e um risquinho novo, vertical, entre as sobrancelhas breves. «Não percebo», disse.
Em frente da televisão, os pais. Olhar para o pequeno écran era a maneira de olharem um para o outro. Mas nessa noite, nem isso. Ela fazia tricô, ele tinha o jornal aberto. Mas tricô e jornal eram álibis. Nessa noite recusavam mesmo o écran onde os seus olhares se confundiam. A menina, porém, ainda não tinha idade para fingimentos tão adultos e subtis, e, sentada no chão, olhava de frente, com toda a sua alma. E então o olhar grande a rugazinha e aquilo de não perceber. «Não percebo», repetiu.

«O que é que não percebes?» disse a mãe por dizer, no fim da carreira, aproveitando a deixa para rasgar o silêncio ruidoso em que alguém espancava alguém com requintes de malvadez.

«Isto, por exemplo.»

«Isto o quê»

«Sei lá. A vida», disse a criança com seriedade.

O pai dobrou o jornal, quis saber qual era o problema que preocupava tanto a filha de oito anos, tão subitamente. Como de costume preparava-se para lhe explicar todos os problemas, os de aritmética e os outros.

«Tudo o que nos dizem para não fazermos é mentira.»

«Não percebo.»

«Ora, tanta coisa. Tudo. Tenho pensado muito e… Dizem-nos para não matar, para não bater. Até não beber álcool, porque faz mal. E depois a televisão… Nos filmes, nos anúncios… Como é a vida, afinal?»

A mão largou o tricô e engoliu em seco. O pai respirou fundo como quem se prepara para uma corrida difícil.

«Ora vejamos,» disse ele olhando para o teto em busca de inspiração. «A vida…»

Mas não era tão fácil como isso falar do desrespeito, do desamor, do absurdo que ele aceitara como normal e que a filha, aos oito anos, recusava.

«A vida…», repetiu.

As agulhas do tricô tinham recomeçado a esvoaçar como pássaros de asas cortadas.


 

“O segredo não é escrever sobre o que você mais ama, mas sobre o que você, sozinho, ama.” —  Annie Dillard

 

Os escândalos continuam a todo vapor no pior governo da nossa história.

“Não sei onde foi que eu li, a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da tarde, está no crepúsculo, nesse meio-tom, nessa ambigüidade. Estou lhe dando um crepúsculo numa bandeja e você se queixa.”

Lygia Fagundes Telles, 1923-2022, no conto “Venha ver o pôr do sol”

Vendo:

  • Star Trek Nova geração 7ª Temporada
  • A História do Cinema – Uma odisseia
  • Na Idade da Inocência – 1976 F. Truffaut

 

Lendo:

  • Só Nós – Claudia Rankine
  • Água fresca para as flores – Valerie Perrin

 

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