Remedios Varo

Poema para a fiandeira de Remedios Varo

não há de ser
só escuro o lado
de dentro do muro
o avesso do viço esse pesar

é a retina
que rege o furor das coisas

sob o descompasso da neblina
há terra úmida que germina —
o coração do ventre
mora no olhar

há de se descortinar o céu de si
vento estrela aurora boreal
arrancar da própria costela a mulher que ali habita
morrer-se a cada dia um tanto
concha
semente
pranto
navegar além do canto (e do silêncio)
das sereias do pensamento

Francesca Cricelli

Ribeirão Preto, maio 2019.

Com cinquenta anos eu me sinto assombrada, cada vez mais assombrada. Segunda adolescência, busca de respostas, o mundo se despedaçando. Como sempre, mato a realidade nos livros. O que leio agora é O Mundo Desdobrável da Carola Saavedra.
Estou amando e fico lendo, suspirando, rabiscando, fazendo pausas e enchendo o WhatsApp dos amigos de trechos. Pois bem. Leio hoje um trecho em que Carola fala de uma artista chamada Remedios Varo.
Paro imediatamente, tenho essa fissura tola de ficar indo em busca das referências. Mas olha só, ela começa o tal trecho assim: “Remedios Varo é uma das artistas mais interessantes que conheço”. Basta isso para que eu queira saber quem é essa artista que encantou a outra artista que tem me encantado, e corro atrás.

Descubro que realmente, puta que pariu, que mulher interessante, como eu não conhecia a história dela? Continuo correndo atrás e vejo as pinturas, socorro, cada uma mais incrível que a outra.


Parecem sonhos, são poesia em telas. E são todas dos anos 50-60 do século XX, mas parecem imagens que vejo agora no universo das pessoas jovens. Parecem saídas do Pinterest ou do Instagram de alguém que ainda está no próprio tempo.

E as pinturas de Varo são surreais, acontecem no próprio coração do movimento Surrealista. Fico encantada, e com muita pena de não poder ver essas pinturas ao vivo. Ainda bem que existe a internet e que vivemos de simulacro. Por ora vai ter que servir.

Resolvo começar a ler sobre ela, a Remedios Varo. Esqueço da vida, esqueço esse mundo feio, todos os meus problemas (ui que delícia). Já me sinto amiga dela, queria bater papo.

Aí até ensaiei fazer uma pequena biografia dela, mas não, informações sobre os dados e datas da vida dela são fáceis de encontrar.

Pois o que eu queria mesmo era falar para vocês que ela foi uma pintora que fez parte do movimento surrealista, era considerada sensacional por André Breton (e por vários outros), mas não teve o mesmo reconhecimento dos homens do movimento, nem de longe.
Também queria contar que ela era antinazista, antifascista, que divergia dos surrealistas da Espanha pois achava que eles eram pouco comprometidos com as mudanças sociais.
Que ela viveu em Paris nos anos dourados do Surrealismo. Que antes ela foi contemporânea de Dali, e viu Um Cão Andaluz em primeira mão.

Remedios pintava o inconsciente, sua obra é uma explosão de cores e de detalhes simbólicos. Que como soi acontecer, ela estava na vanguarda, como pessoa e como artista. E não se envergonhava de suas bruxarias ou de seu colorido.

Que ela se casou para sair do jugo da família e na primeira oportunidade vazou com o marido para a França, fugindo da Guerra Civil espanhola. Mas logo se viu numa Paris ocupada. E Frida Kahlo rogou ao governo do México que a recebesse na fuga do nazismo. (Isso só se soube recentemente, a fofoca mais conhecida era a de que Frida e Diego esnobaram Remedios quando ela chegou ao México).

Quero contar para vocês que as pinturas dela são maravilhosas e que ela era fascinante e teve N amantes, casou, descasou várias vezes, se apaixonou outras tantas. Que era muito amiga dos ex maridos e ex amores. Não teve filhos. Teve um amante 14 anos mais jovem e foi rodar o mundo com ele, que era piloto. Abandonou a Espanha e ficou no México. Era bruxa, mística, intelectual. Lia Gurdjeff e suas pinturas têm a influência dele e de gente como Poe, Dumas, Verne, Bosch, El Greco, Goya.
Remedios adorava gatos, suas pinturas estão cheias de gatos, de torres, de relógios, de freiras, de fios finíssimos, de rodas de bicicletas e de pessoas magérrimas. Também é cheia de janelas e de Freud e de Jung.
Essa moça tão diferente encantou Octavio Paz. E esse poeta lhe escreveu um texto belíssimo, além de cartas e bilhetes cheios de amor e admiração.

Mas o que me deixou cheia de risadinhas juvenis foi a amizade dela com Leonor Carrington. As duas trocavam receitas de poções eróticas e mágicas, se deliciavam conversando sobre misticismo e magia e viagens interiores, e também com coisas que seriam impossíveis de realizar. E riam juntas, eram vizinhas e bebiam juntas. Conquiatariam o mundo juntas se tivessem deixado. Não me contaram isso, mas certamente elas se apoiavam. Ainda mais nos anos 50, contra tudo, contra o mundo dos homens. E juntas causavam (risos). Elas se chamavam almas gêmeas.


Também não posso esquecer de falar que as obras dela são sim, do mesmo nível dos maiores trabalhos surrealistas e que ela não merecia ficar fora da história da pintura, como uma menção apenas. Isso não sou eu que falo, quem sou eu, mas gente que entende do riscado. Ainda bem que nosso tempo vem corrigindo essas injustiças.

Remedios morreu muito cedo, morreu aos 55 anos. É outro assombro pensar nisso. É um assombro pensar numa vida tão curta e tão rica, ela tinha apenas 55! Por isso também eu tenho 50 e vivo assombrada.
Outra hora vou procurar sobre Leonor, talvez ela tenha morrido mais tarde. Quem sabe ela começou depois dos 50 e eu ainda tenho tempo? (risos eternos)


Aí vai um pequeno pdf que fiz com algumas obras de
Remedios e um texto de Octavio Paz sobre ela: Remedios Varo pinturas e texto

(Esse texto eu fiz de cabeça depois de ler várias coisas e pode ter incorreções. Mas se alguém se dignar a ver as pinturas dela, já valeu)

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